por Evaldo Feitosa
A democracia tem por fundamento a
igualdade, mas só se consolida no respeito às diferenças. A igualdade dos indivíduos sujeitos à ordem pública não
significa conferir a todos os mesmos direitos e deveres, sem fazer quaisquer
distinções, pois se chegaria ao absurdo de concluir que uma criança pensa como
um adulto, ou que um louco age tal qual um homem são. Daí a importância da
máxima de Aristóteles pela qual se deve tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam. Por essa ótica,
é perfeitamente plausível que a própria lei estabeleça fatores de discriminação
sem quebrar o princípio da isonomia. A
questão que exsurge é a seguinte: em que casos é vedado à lei
estabelecer discriminação?
Nota-se
uma crescente promulgação de leis discriminatórias, destinando-se especialmente
a determinados setores, fatos, agentes,
ou sujeitos, em evidente afronta ao princípio elementar da universalidade da
norma; chega-se até ao despropósito de
se batizar lei-fulano, lei-pega-beltrano, ou
lei-pró-sicrano, tornando vasto o campo das leis ditas fulanizadas[1].
Para contextualizar, citamos os debates sobre a Lei da Ficha Limpa, quando um
Ministro afirmou que determinado aspecto dessa norma a tornava casuística, pois
que destinada a “pegar fulano”, alertando para o ensinamento de Machado
de Assis: “a melhor forma de apreciar o chicote é ter o cabo nas mãos. Mas o
chicote muda de mãos”. Em meio à
refinada ironia, restou patente o alerta para o perigo das leis fulanizadas,
casuísticas, ou discriminatórias.
Há
uma gama extensa de tais normas. Todavia a que vem suscitando o levantamento de
questões assaz relevantes é a Lei 11.340/06, conhecida como Maria da Penha, cujo
escopo é “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. O alcance
social é irrefutável. Entretanto, os legisladores erraram quando, na tentativa
de proteger o ambiente familiar, entenderam
que a violência é privativa do gênero masculino. A reação foi imediata , em
especial, após a decisão de um magistrado que concedeu as medidas protetivas de
urgência ao ofendido homem, em desfavor da mulher, aplicando analogicamente a
referida lei, sob o fundamento de que: “não podemos aplicar a lei penal por
analogia quando se tratar de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da
reserva legal”, mas “não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do
réu quando não se tratar de norma incriminadora, como prega a boa doutrina”. Em
outro caso, o juiz de uma vara criminal do Rio de Janeiro aplicou a Lei Maria da Penha para proteger um
homossexual que sofria agressões continuadas de seu companheiro.
Outras
questões abarrotaram os Tribunais,
destacando-se a ADI 4424 e a ADC-19. No
primeiro caso, o tema versava sobre a representação da ofendida nos crimes de
lesão corporal leve praticados em situação de violência doméstica, ficando
assentado que “não é necessária a representação da ofendida, pois trata-se de
ação pública incondicionada”. Na ADC-19, concluiu-se que não é “desproporcional
ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação, visto que a mulher
seria eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e
psicológicos sofridos no âmbito privado”. Eis outros temas relevantes: “a Lei
Maria da Penha atribuiu às uniões
homoafetivas o caráter de entidade familiar, ao prever, no artigo 5º, parágrafo
único, que as relações pessoais mencionadas naquele dispositivo independem de
orientação sexual”( Resp. 827962); “o crime de lesão corporal, mesmo que leve
ou culposa, praticado contra a mulher, no âmbito das relações domésticas, deve
ser processado mediante ação penal pública incondicionada”(AREsp 40934); “aplica-se
a Lei 11.340/06, no caso de agressão cometida por ex-namorado que não se
conformou com o fim do namoro”(CC-103813); a lei 11.340 “se aplica na relação
entre irmãos, sendo desnecessário configurar coabitação entre eles”(Resp
1239850).
Mesmo
no campo legislativo, também houve reação, estando em curso diversos Projetos[2],
modificando o texto da Lei para lhe dar uma abrangência que o legislador
originário tentou impedir.
Analisando
a Lei Maria da Penha, observa-se que a maior parte das medidas já era prevista
na legislação pátria em diplomas normativos diversos. Entretanto, houve também
a importação de instrumentos cautelares há muito conhecido no direito
comparado, como Restraint Order
australiana e a Restraining Order
prevista no sistema jurídico americano, ambos com natureza de medida cautelar,
ou de antecipação de tutela. Todavia, enquanto nosso sistema legal tentou
restringir e limitar, estabelecendo como premissa a discriminação de gênero, na doutrina americana a Restraining Order pode ser utilizada em uma vasta gama de
situações, inclusive disputas trabalhistas, quebra de patentes, importunações
de toda sorte, além de abuso doméstico e em causas familiares.
O
próprio Supremo já decidiu sobre a constitucionalidade da Lei, afirmando “não
ser desproporcional, nem ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação”.
Por seu turno, os tribunais vêm flexibilizando a discriminação legislativa,
deferindo a proteção da lei inclusive nas relações homoafetivas envolvendo duas
pessoas do sexo masculino, em aparente conflito com a mens legis. Ressalte-se: o
legislador aprovou uma lei textualmente destinada a “coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher”, enquanto
os juízes decidem incluir outros atores,
sem levar em conta a discriminação de gênero. Qual o motivo de tanta
discrepância entre a vontade do
legislador e decisão do interprete, na aplicação da lei?
A
resposta deverá ser buscada na distinção entre norma(ou regra) e princípio. Quanto
ao conteúdo, os princípios incorporam primeira e diretamente os valores ditos
fundamentais, enquanto as regras destes se ocupam mediatamente, num segundo
momento; quanto à forma enunciativa as normas são mais específicas, enquanto os
princípios são vagos, amplos e abertos; no tocante à aplicação, os princípios
incidem sempre mediados por regras, sem excluir outros princípios concorrentes,
nem mesmo divergentes, que podem conjugar-se ou ser afastados apenas no caso concreto,
sendo que as regras incidem diretamente
e exclusivamente, eliminando outras conflitantes; no que se refere à
funcionalidade ou utilidade os
princípios servem de fundamentação, atuando as normas na regulação específica. Em síntese: as regras obrigam, proíbem, ou
permitem alguma coisa, enquanto que os princípios exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as
possibilidades fáticas e jurídicas. Ao contrário das normas, os princípios só
têm algum valor operativo diante de algum caso concreto. Seu significado não se
percebe em abstrato, pois somente nos casos concretos se pode entender seu
alcance. É o conhecimento do princípio
que preside toda a interpretação do sistema jurídico positivo. Violar um
princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma.
No
caso em comento, o princípio norteador é
o da igualdade. No momento da elaboração da Lei Maria da Penha o órgão legiferante
- no afã de atender ao clamor popular - estabeleceu a discriminação de gênero,
elencando medidas de proteção à mulher no âmbito familiar. Todavia, na hora de
aplicar a Lei, os juízes perceberam a existência de um princípio maior a
nortear todo o sistema: o princípio da igualdade de todos perante a lei,
pressuposto essencial da dignidade da pessoa humana. Assim é que a ideia de igualdade sufragada
pelo intérprete serve para determinar, razoavelmente e não arbitrariamente, que
grau de desigualdade jurídica no trato entre dois ou mais sujeitos é tolerável.
A igualdade é um critério que mede o grau de desigualdade juridicamente
admissível.
Em
síntese, ninguém deixaria de reconhecer a ofensa ao princípio da dignidade da
pessoa humana na situação de uma mulher submetida à violência de seu
companheiro. A Lei Maria da Penha é constitucional justamente quando dar
efetividade ao princípio da igualdade, permitindo fator de desigualação. A sua
extensão a outros sujeitos, inclusive do sexo masculino, obedece ao princípio da isonomia.
[1] A propósito
veja-se o vasto repertório de leis fulanizadas: Lei Carolina
Dieckman(12.737/2012); Lei Maria da Penha (11.340/06); Lei Kandir(LC 87/96);
Lei Rouanet(8.313/91); Lei Pelé (9615/98); Lei Zico(8672/93), etc.
[2]São os seguintes os projetos de Lei na Câmara dos
Deputados que visam a ampliar a abrangência da Lei Maria da Penha: PL-5555/2013; PL-5161/2013; PL-5114/2013;
PL-4972/2013; REQ-199/2013-CCTCI; PL-4413/2012; PL-4381/2012; PL-3888/2012;
REQ-142/2012 CDHM; SDL-3/2012-CLP; EMC-2468/2011 PL-8035-10 e PL 8035/2010;
EMC-1673/2011; PL-2452/2011; PL-1855/2011; PL-1322/2011; REQ-600-2011;
REQ-102/2011; PL-8045/2010; PL-7353/2010; RCP-19/2010; SDL-20/2010-CLP;
PL-6340/2009; PL-5297/2009; REQ-5393/2009; REQ-265/2009-CEC; SUG-179/2009-CLP;
PL-4367/2008; PL-3564/2008; PL-3388/2008; REQ-2306/2008; RIC-3263/2008;
SOR-9/2008-CSPCCO; INC-1346/2007; INC-194/2007; PL-2431/2007; PL-304/2007;
REQ-2048/2007; REQ-1897/2007; REQ-142/2007-CDHM; REQ-80/2007; REQ-61/2207;
PL-4559/2004;SBR-3/CTASP-PL2431/2007; SBT-2 CTASP-PL24321/2007;
SBT-2/CCJC-PL-4559/2004; SBT-2 CSSF-PL 4559/2004; SBT-1-CSSF-PL-5297/2009;
SBT-1 CTASP-PL2431/2007. Disponível em: www.camaradosdeputados.gov.br. Acessado em 21 de maio de
2013.
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