quinta-feira, 5 de setembro de 2013

O Perigo Das Leis Fulanizadas

por Evaldo Feitosa



                A democracia tem por fundamento a igualdade, mas só se consolida no respeito às diferenças. A igualdade  dos indivíduos sujeitos à ordem pública não significa conferir a todos os mesmos direitos e deveres, sem fazer quaisquer distinções, pois se chegaria ao absurdo de concluir que uma criança pensa como um adulto, ou que um louco age tal qual um homem são. Daí a importância da máxima de Aristóteles pela qual se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam. Por essa ótica, é perfeitamente plausível que a própria lei estabeleça fatores de discriminação sem quebrar o princípio da isonomia. A  questão que exsurge é a seguinte: em que casos é vedado à lei estabelecer discriminação?
                Nota-se uma crescente promulgação de leis discriminatórias, destinando-se especialmente a determinados setores, fatos,  agentes, ou sujeitos, em evidente afronta ao princípio elementar da universalidade da norma; chega-se até ao despropósito  de se  batizar   lei-fulano, lei-pega-beltrano, ou lei-pró-sicrano, tornando vasto o campo das leis ditas fulanizadas[1]. Para contextualizar, citamos os debates sobre a Lei da Ficha Limpa, quando um Ministro afirmou que determinado aspecto dessa norma a tornava casuística,  pois  que destinada a “pegar fulano”, alertando para o ensinamento de Machado de Assis: “a melhor forma de apreciar o chicote é ter o cabo nas mãos. Mas o chicote muda de mãos”.  Em meio à refinada ironia, restou patente o alerta para o perigo das leis fulanizadas, casuísticas, ou discriminatórias.
                Há uma gama extensa de tais normas. Todavia a que vem suscitando o levantamento de questões assaz relevantes é a Lei 11.340/06, conhecida como Maria da Penha, cujo escopo é “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. O alcance social é irrefutável. Entretanto, os legisladores erraram quando, na tentativa de proteger o ambiente familiar,  entenderam que a violência é privativa do gênero masculino. A reação foi imediata , em especial, após a decisão de um magistrado que concedeu as medidas protetivas de urgência ao ofendido homem, em desfavor da mulher, aplicando analogicamente a referida lei, sob o fundamento de que: “não podemos aplicar a lei penal por analogia quando se tratar de norma incriminadora, porquanto fere o princípio da reserva legal”,  mas  “não quer dizer que não podemos aplicá-la in bonam partem, ou seja, em favor do réu quando não se tratar de norma incriminadora, como prega a boa doutrina”. Em outro caso, o juiz de uma vara criminal do Rio de Janeiro  aplicou a Lei Maria da Penha para proteger um homossexual que sofria agressões continuadas de seu companheiro.
                Outras questões abarrotaram  os Tribunais, destacando-se a ADI 4424 e a ADC-19.  No primeiro caso, o tema versava sobre a representação da ofendida nos crimes de lesão corporal leve praticados em situação de violência doméstica, ficando assentado que “não é necessária a representação da ofendida, pois trata-se de ação pública incondicionada”. Na ADC-19, concluiu-se que não é “desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação, visto que a mulher seria eminentemente vulnerável no tocante a constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos no âmbito privado”. Eis outros temas relevantes: “a Lei Maria da Penha atribuiu  às uniões homoafetivas o caráter de entidade familiar, ao prever, no artigo 5º, parágrafo único, que as relações pessoais mencionadas naquele dispositivo independem de orientação sexual”( Resp. 827962); “o crime de lesão corporal, mesmo que leve ou culposa, praticado contra a mulher, no âmbito das relações domésticas, deve ser processado mediante ação penal pública incondicionada”(AREsp 40934); “aplica-se a Lei 11.340/06, no caso de agressão cometida por ex-namorado que não se conformou com o fim do namoro”(CC-103813); a lei 11.340 “se aplica na relação entre irmãos, sendo desnecessário configurar coabitação entre eles”(Resp 1239850).
                Mesmo no campo legislativo, também houve reação, estando em curso diversos Projetos[2], modificando o texto da Lei para lhe dar uma abrangência que o legislador originário tentou impedir.
                Analisando a Lei Maria da Penha, observa-se que a maior parte das medidas já era prevista na legislação pátria em diplomas normativos diversos. Entretanto, houve também a importação de instrumentos cautelares há muito conhecido no direito comparado, como Restraint Order australiana e a Restraining Order prevista no sistema jurídico americano, ambos com natureza de medida cautelar, ou de antecipação de tutela. Todavia, enquanto nosso sistema legal tentou restringir e limitar, estabelecendo como premissa a discriminação de gênero,  na doutrina americana a Restraining Order pode ser utilizada em uma vasta gama de situações, inclusive disputas trabalhistas, quebra de patentes, importunações de toda sorte, além de abuso doméstico e em causas familiares.
                O próprio Supremo já decidiu sobre a constitucionalidade da Lei, afirmando “não ser desproporcional, nem ilegítimo o uso do sexo como critério de diferenciação”. Por seu turno, os tribunais vêm flexibilizando a discriminação legislativa, deferindo a proteção da lei inclusive nas relações homoafetivas envolvendo duas pessoas do sexo masculino, em aparente conflito com a mens legis. Ressalte-se:  o legislador aprovou uma lei textualmente destinada a “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”,  enquanto os juízes decidem  incluir outros atores, sem levar em conta a discriminação de gênero. Qual o motivo de tanta discrepância entre a vontade do legislador  e decisão do interprete, na aplicação da lei? 
                A resposta deverá ser buscada na distinção entre norma(ou regra) e princípio. Quanto ao conteúdo, os princípios incorporam primeira e diretamente os valores ditos fundamentais, enquanto as regras destes se ocupam mediatamente, num segundo momento; quanto à forma enunciativa as normas são mais específicas, enquanto os princípios são vagos, amplos e abertos; no tocante à aplicação, os princípios incidem sempre mediados por regras, sem excluir outros princípios concorrentes, nem mesmo divergentes, que podem conjugar-se ou ser afastados apenas no caso concreto, sendo que as regras  incidem diretamente e exclusivamente, eliminando outras conflitantes; no que se refere à funcionalidade  ou utilidade os princípios servem de fundamentação, atuando as normas na regulação específica.  Em síntese: as regras obrigam, proíbem, ou permitem alguma coisa, enquanto que os princípios  exigem a realização de algo,  da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Ao contrário das normas, os princípios só têm algum valor operativo diante de algum caso concreto. Seu significado não se percebe em abstrato, pois somente nos casos concretos se pode entender seu alcance.  É o conhecimento do princípio que preside toda a interpretação do sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma.
                No caso  em comento, o princípio norteador é o da igualdade. No momento da elaboração da Lei Maria da Penha o órgão legiferante - no afã de atender ao clamor popular -  estabeleceu a discriminação de gênero, elencando medidas de proteção à mulher no âmbito familiar. Todavia, na hora de aplicar a Lei, os juízes perceberam a existência de um princípio maior a nortear todo o sistema: o princípio da igualdade de todos perante a lei, pressuposto essencial da dignidade da pessoa humana.  Assim é que a ideia de igualdade sufragada pelo intérprete serve para determinar, razoavelmente e não arbitrariamente, que grau de desigualdade jurídica no trato entre dois ou mais sujeitos é tolerável. A igualdade é um critério que mede o grau de desigualdade juridicamente admissível.
                Em síntese, ninguém deixaria de reconhecer a ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana na situação de uma mulher submetida à violência de seu companheiro. A Lei Maria da Penha é constitucional justamente quando dar efetividade ao princípio da igualdade, permitindo fator de desigualação. A sua extensão a outros sujeitos, inclusive do sexo masculino,  obedece ao princípio da isonomia.
               
               
               


[1] A propósito veja-se o vasto repertório de leis fulanizadas: Lei Carolina Dieckman(12.737/2012); Lei Maria da Penha (11.340/06); Lei Kandir(LC 87/96); Lei Rouanet(8.313/91); Lei Pelé (9615/98); Lei Zico(8672/93), etc.
[2]São os seguintes os projetos de Lei na Câmara dos Deputados que visam a ampliar a abrangência da Lei Maria da Penha:  PL-5555/2013; PL-5161/2013; PL-5114/2013; PL-4972/2013; REQ-199/2013-CCTCI; PL-4413/2012; PL-4381/2012; PL-3888/2012; REQ-142/2012 CDHM; SDL-3/2012-CLP; EMC-2468/2011 PL-8035-10 e PL 8035/2010; EMC-1673/2011; PL-2452/2011; PL-1855/2011; PL-1322/2011; REQ-600-2011; REQ-102/2011; PL-8045/2010; PL-7353/2010; RCP-19/2010; SDL-20/2010-CLP; PL-6340/2009; PL-5297/2009; REQ-5393/2009; REQ-265/2009-CEC; SUG-179/2009-CLP; PL-4367/2008; PL-3564/2008; PL-3388/2008; REQ-2306/2008; RIC-3263/2008; SOR-9/2008-CSPCCO; INC-1346/2007; INC-194/2007; PL-2431/2007; PL-304/2007; REQ-2048/2007; REQ-1897/2007; REQ-142/2007-CDHM; REQ-80/2007; REQ-61/2207; PL-4559/2004;SBR-3/CTASP-PL2431/2007; SBT-2 CTASP-PL24321/2007; SBT-2/CCJC-PL-4559/2004; SBT-2 CSSF-PL 4559/2004; SBT-1-CSSF-PL-5297/2009; SBT-1 CTASP-PL2431/2007. Disponível em: www.camaradosdeputados.gov.br. Acessado em 21 de maio de 2013.

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