sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

O COMPRADOR DE MENTIRAS: ALEGORIA OU SÁTIRA ATUAL?


Murilo Moreira Veras


Evaldo Feitosa, bacharel em Direito e Oficial de Cartório, membro da Academia de Letras de Brasília escreveu um romance, ou novela, sob o título “O Comprador de Mentiras”. O autor, na sua modéstia, publica-o como um simples romance, mas, na realidade, é muito mais que uma história ou estória. O que faz desse livro ter sua temática tão urgente e atual, no nosso entender? A coincidência da atualidade de seu enredo, a aplicabilidade da alegoria ou sátira ao nosso tempo, ao nosso meio, à nossa circunstância. Talvez dentro do contexto Ortega y Gasset de “eu sou eu e a circunstância” – o argumento mendaciano cabendo como uma luva no pantagruélico terreno da circunstância brasileira.
Antes de ser um comentário qualquer,  as presentes impressões objetivam fazer jus à obra do autor, seu trabalho e sobretudo sobrelevar as  pesquisas que empreendeu na elaboração de seu romance/novela.
Atentamos para dois itens principais no livro do autor: seu desenvolvimento e sua exegese.
O primeiro aspecto é seu enredo, a trama, o desenrolar da estória ou história, como o autor expõe sua obra inventiva, aspecto esse que implica o âmago do acontecer, a engenhosidade. E é de ver-se que o fio da meada neste “O Comprador de Mentiras” é singular, podemos até assegurar propedêutico por propor ensinamentos. Se, em tese, consideramos o livro uma alegoria, cediça a uma sátira, seu enredo parece-nos exemplar, com todos os requisitos ali expressos: o jocoso, o engodo com todos os trapaceiros, a surpresa final. E como sátira – que também o é – os elementos de transposição do imitatio para o terreno da realidade. Há uma ocorrência inusitada na cidade (qualquer cidade) em que um indivíduo, então desconhecido, anuncia ostensivamente que compra mentiras. Seus habitantes logo se habilitam e assim, diante do comprador incógnito, desfilam os diversos representantes daquela sociedade, o advogado, o padre, o pastor, o político, o médico, o cabeleireiro, a prostituta e o comendador. O pagamento oferecido é feito mediante apuração em  “estrovenga” tecnológica, o candidato vende suas mentiras, o computador de última geração avalia e computa e o comprador, sempre incógnito, de quem só se ouve a voz metálica, paga in cash, na hora, o beneficiado sai satisfeito, bem pago, ou insatisfeito, mal pago. O advogado com suas mentiras jurídicas justifica a processualísticas que faz do direito uma alquimia.   O político sai de certo modo ínclito, suas mentiras se equalizam com a sociedade, que o elegeu. Os religiosos, Padre e Pastor, têm suas mentiras empatadas, porque mentem em benefício do Reino, desde que não se locupletem vendendo a fé que praticam, no fim acabam se igualando e tornam-se até amigos. O cabeleireiro vende suas inverdades, mas proíbe a fofoca, no seu salão, para não competir com seus adversários, mantendo-se ileso. O médico, cujo nome é Acérrimo, suas mentiras são humanitárias, por visarem proteger a saúde do paciente, mas não evitam a morte. Já a mulher de vida fácil, arrolada entre as profissionais mais antigas do mundo, demonstra sua habilidade e acaba sendo aplaudida. Mas o Comendador – o prodigioso surdo-mudo de dois corações, Mendacium Mentax Júnior – este ganha uma fortuna com suas mentiras semióticas.
Mas acontece que a ocorrência gerada pela estrambótica compra das mentiras não fica impune, pois o imbróglio é levado às barras da justiça e acaba objeto do tribunal de jure. O Comprador de Mentiras é considerado estelionatário, na verdade um ladrão, embora quem roube de ladrão, tenha cem anos de perdão. Então, em juízo, mediante toda a parafernália jurídica, de acusação, defesa e jurados, todos os vendedores de mentiras são levados a depor, as razões de suas ações e porque demandaram a justiça. Cada qual faz sua defesa particular, o inquiridor é o próprio comprador, investido de “advogado do diabo”. E fica decidido, em juízo, que o maior mentiroso do mundo é o Comendador Mendacium Mentax Júnior, surdo-mudo, com dois corações.  
Ora, ocorre  que todos agora querem suas mentiras de volta. E agora? Quem é o culpado, responsável pela “compra”  tempestiva das mentiras da comunidade? Claro, o monstro inaudito chamado Comprador de Mentiras. Mas o sujeito desaparece repentinamente. E agora a justiça tem o dever de prender o culpado. Dever a cargo do Dr. Delegado Feitosa, que para solucionar tão inusitado caso, recorre nada menos que à filosofia do grande Santo Agostinho, para enquadrar o criminoso e fazer justiça. E as “mentiras”, já adquiridas pelo Comprador, serão devolvidas?
Então surge o fantástico, o extraordinário. O Delegado persegue o marginal, que se transforma num monstro, em meio a uma armadilha repleta  de robôs e monstros, todos monitorados por computadores de última geração. Horror. Fantasia. Ficção científica.
Toda a trama, seu desenrolar  não se restringe a mostrar o imbróglio, o autor o faz, mas cada passo embasado em doutrina, em teoria, conceitos, justificações, em meio às arguições. E ai reside o vigor intelectual do escritor, que não nos conta apenas um conto, uma novela, ou um simples romance –  leva o leitor a fazer reflexões. Dai o fundamento, por assim dizer, da “alegoria”, da “sátira”, da “parábola”, que é expressar um ensino, o “ethos” propedêutico. Eis, em síntese, a grande tecedura de “O Comprador de Mentiras”.
Ousemos o outro lado da moeda literária do livro de Evaldo Feitosa: sua exegese.
O que o autor quer dizer com essa alegoria? Recordemos, a propósito, que a alegoria é uma representação de um objeto (ou situação) para significar outro (ou situação). Vejamos, por exemplo, a alegoria de “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna. É toda uma encenação para homenagear Nossa Senhora, como mediadora da salvação dos seres humanos, contada à maneira da tradição nordestina, brasileira e cristianizada. A “Revolução dos Bichos”, de Jorge Orwell, também a representação de uma realidade que disfarça na verdade outra, refere-se a  outra realidade., no caso  a Revolução Russa, a implantação da ideologia comunista. Poderíamos citar outras. “A Cidade do Sol”, de Campanella, como seria o mundo sob nova ordem, não material, mas espiritualizada; a “Utopia”, de Thomas More, proposta de um regime solidarista cristão. Os gêneros literários considerados epopeias, como as de Homero (Ilíadas e Odisseia), também a “Metamorfose” de Ovídio e “Eneida”, de Virgílio, se examinadas com mais profundidade, talvez encontremos em seus mitos e metáforas, muita coisa de raiz alegórica. isto é, fatos significando outros fatos. Ora, estudiosos e eruditos já consideram hoje a mitologia como fonte primeira do próprio cristianismo.  Os mitos, portanto, podem expressar alegorias, simbolismos.
Em “O Comprador de Mentiras” todo o cerne da alegoria repousa na mentira. A mentira é o centro do universo. Esta “mentira” que tem uma enciclopédia de sinônimos (ver Dicionário de Sinônimos da Editora Porto, Portugal : aleive, burla, falsidade, ludibrio, endrômina, lorota, mendacidade, etc.) Na alegoria, o autor transcendentaliza a mentira nas teses de Santo Agostinho: “Sobre a Mentira” – De Mendacio, ano de 395; e “Contra a Mentira” – Contra Mendacium, 420. Nestes dois tratados, Agostinho esgota o assunto.
No livro, as teorias de Agostinho são contextualizadas no desenrolar do jure e quem as expende, de cátedra, é o Dr. Delegado Feitosa (homônimo do autor?).  E à medida que ocorre o jure, com toda sua processualística, o Delegado vai dando aula sobre a mentira com base no bispo de Hipona.
Não é difícil encontrar similitude entre o imbróglio alegórico e realidade atual, inclusive a que o País vive no momento. É a mentira reinando soberana em todas as camadas das sociedade. Inclusive no âmbito do judiciário ou da constituição e dação da justiça. Haja vista que, no final, desvenda-se que o grande comprador de mentiras é o próprio juiz da cidade, Dr. Rivail.  Desse modo, a figura da alegoria contida no  romance/novela do autor pode significar uma grande metáfora “in extensis”, isto é, que uma situação fictícia, de caráter enganoso, toma lugar à verdadeira realidade, talvez imitativa daquela simbologia já preconizada por Platão, quatro século antes de Cristo, em sua célebre “Alegoria da Caverna”.
Quem sabe nós, que nos arrogamos tanto de construtores da modernidade, não estamos sendo conspicuamente enganados quando queremos distinguir, entre as sombras de nossas indigência espiritual, os fatos que justificam a realidade meridiana do sol?
Era o que queríamos dizer sobre esse tratado simbólico de uma fantasia anunciada do escritor e jurista Edvaldo Feitosa, que, de grado e em boa hora, nos dá a lume.
                                                                            Bxb, 3.12.15

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