Murilo Moreira Veras
Evaldo Feitosa, bacharel em Direito e
Oficial de Cartório, membro da Academia de Letras de Brasília escreveu um
romance, ou novela, sob o título “O Comprador de Mentiras”. O autor, na sua
modéstia, publica-o como um simples romance, mas, na realidade, é muito mais
que uma história ou estória. O que faz desse livro ter sua temática tão urgente
e atual, no nosso entender? A coincidência da atualidade de seu enredo, a
aplicabilidade da alegoria ou sátira ao nosso tempo, ao nosso meio, à nossa
circunstância. Talvez dentro do contexto Ortega y Gasset de “eu sou eu e a circunstância”
– o argumento mendaciano cabendo como uma luva no pantagruélico terreno da
circunstância brasileira.
Antes
de ser um comentário qualquer, as
presentes impressões objetivam fazer jus à obra do autor, seu trabalho e
sobretudo sobrelevar as pesquisas que
empreendeu na elaboração de seu romance/novela.
Atentamos
para dois itens principais no livro do autor: seu desenvolvimento e sua
exegese.
O
primeiro aspecto é seu enredo, a trama, o desenrolar da estória ou história,
como o autor expõe sua obra inventiva, aspecto esse que implica o âmago do
acontecer, a engenhosidade. E é de ver-se que o fio da meada neste “O Comprador
de Mentiras” é singular, podemos até assegurar propedêutico por propor
ensinamentos. Se, em tese, consideramos o livro uma alegoria, cediça a uma
sátira, seu enredo parece-nos exemplar, com todos os requisitos ali expressos:
o jocoso, o engodo com todos os trapaceiros, a surpresa final. E como sátira –
que também o é – os elementos de transposição do imitatio para o terreno
da realidade. Há uma ocorrência inusitada na cidade (qualquer cidade) em que um
indivíduo, então desconhecido, anuncia ostensivamente que compra mentiras. Seus
habitantes logo se habilitam e assim, diante do comprador incógnito, desfilam
os diversos representantes daquela sociedade, o advogado, o padre, o pastor, o
político, o médico, o cabeleireiro, a prostituta e o comendador. O pagamento
oferecido é feito mediante apuração em
“estrovenga” tecnológica, o candidato vende suas mentiras, o computador
de última geração avalia e computa e o comprador, sempre incógnito, de quem só
se ouve a voz metálica, paga in cash, na hora, o beneficiado sai satisfeito,
bem pago, ou insatisfeito, mal pago. O advogado com suas mentiras jurídicas
justifica a processualísticas que faz do direito uma alquimia. O político sai de certo modo ínclito, suas
mentiras se equalizam com a sociedade, que o elegeu. Os religiosos, Padre e
Pastor, têm suas mentiras empatadas, porque mentem em benefício do Reino, desde
que não se locupletem vendendo a fé que praticam, no fim acabam se igualando e
tornam-se até amigos. O cabeleireiro vende suas inverdades, mas proíbe a fofoca,
no seu salão, para não competir com seus adversários, mantendo-se ileso. O
médico, cujo nome é Acérrimo, suas mentiras são humanitárias, por visarem
proteger a saúde do paciente, mas não evitam a morte. Já a mulher de vida
fácil, arrolada entre as profissionais mais antigas do mundo, demonstra sua
habilidade e acaba sendo aplaudida. Mas o Comendador – o prodigioso surdo-mudo
de dois corações, Mendacium Mentax Júnior – este ganha uma fortuna com suas
mentiras semióticas.
Mas
acontece que a ocorrência gerada pela estrambótica compra das mentiras não fica
impune, pois o imbróglio é levado às barras da justiça e acaba objeto do tribunal
de jure. O Comprador de Mentiras é considerado estelionatário, na verdade um
ladrão, embora quem roube de ladrão, tenha cem anos de perdão. Então, em juízo,
mediante toda a parafernália jurídica, de acusação, defesa e jurados, todos os
vendedores de mentiras são levados a depor, as razões de suas ações e porque
demandaram a justiça. Cada qual faz sua defesa particular, o inquiridor é o
próprio comprador, investido de “advogado do diabo”. E fica decidido, em juízo,
que o maior mentiroso do mundo é o Comendador Mendacium Mentax Júnior,
surdo-mudo, com dois corações.
Ora,
ocorre que todos agora querem suas
mentiras de volta. E agora? Quem é o culpado, responsável pela “compra” tempestiva das mentiras da comunidade? Claro,
o monstro inaudito chamado Comprador de Mentiras. Mas o sujeito desaparece
repentinamente. E agora a justiça tem o dever de prender o culpado. Dever a
cargo do Dr. Delegado Feitosa, que para solucionar tão inusitado caso, recorre
nada menos que à filosofia do grande Santo Agostinho, para enquadrar o
criminoso e fazer justiça. E as “mentiras”, já adquiridas pelo Comprador, serão
devolvidas?
Então
surge o fantástico, o extraordinário. O Delegado persegue o marginal, que se
transforma num monstro, em meio a uma armadilha repleta de robôs e monstros, todos monitorados por
computadores de última geração. Horror. Fantasia. Ficção científica.
Toda
a trama, seu desenrolar não se restringe
a mostrar o imbróglio, o autor o faz, mas cada passo embasado em doutrina, em
teoria, conceitos, justificações, em meio às arguições. E ai reside o vigor
intelectual do escritor, que não nos conta apenas um conto, uma novela, ou um
simples romance – leva o leitor a fazer
reflexões. Dai o fundamento, por assim dizer, da “alegoria”, da “sátira”, da
“parábola”, que é expressar um ensino, o “ethos” propedêutico. Eis, em síntese,
a grande tecedura de “O Comprador de Mentiras”.
Ousemos
o outro lado da moeda literária do livro de Evaldo Feitosa: sua exegese.
O
que o autor quer dizer com essa alegoria? Recordemos, a propósito, que a
alegoria é uma representação de um objeto (ou situação) para significar outro
(ou situação). Vejamos, por exemplo, a alegoria de “O Auto da Compadecida”, de
Ariano Suassuna. É toda uma encenação para homenagear Nossa Senhora, como mediadora
da salvação dos seres humanos, contada à maneira da tradição nordestina,
brasileira e cristianizada. A “Revolução
dos Bichos”, de Jorge Orwell, também a representação de uma realidade que
disfarça na verdade outra, refere-se a
outra realidade., no caso a
Revolução Russa, a implantação da ideologia comunista. Poderíamos citar outras.
“A Cidade do Sol”, de Campanella,
como seria o mundo sob nova ordem, não material, mas espiritualizada; a “Utopia”, de Thomas More, proposta de um
regime solidarista cristão. Os gêneros literários considerados epopeias, como
as de Homero (Ilíadas e Odisseia), também a “Metamorfose” de Ovídio e “Eneida”, de Virgílio, se examinadas com
mais profundidade, talvez encontremos em seus mitos e metáforas, muita coisa de
raiz alegórica. isto é, fatos significando outros fatos. Ora, estudiosos e
eruditos já consideram hoje a mitologia como fonte primeira do próprio cristianismo. Os mitos, portanto, podem expressar
alegorias, simbolismos.
Em
“O Comprador de Mentiras” todo o cerne da alegoria repousa na mentira. A mentira
é o centro do universo. Esta “mentira” que tem uma enciclopédia de sinônimos
(ver Dicionário de Sinônimos da Editora Porto, Portugal : aleive, burla,
falsidade, ludibrio, endrômina, lorota, mendacidade, etc.) Na alegoria, o autor
transcendentaliza a mentira nas teses de Santo Agostinho: “Sobre a Mentira” –
De Mendacio, ano de 395; e “Contra a Mentira” – Contra Mendacium, 420. Nestes
dois tratados, Agostinho esgota o assunto.
No
livro, as teorias de Agostinho são contextualizadas no desenrolar do jure e
quem as expende, de cátedra, é o Dr. Delegado Feitosa (homônimo do autor?). E à medida que ocorre o jure, com toda sua
processualística, o Delegado vai dando aula sobre a mentira com base no bispo de
Hipona.
Não
é difícil encontrar similitude entre o imbróglio alegórico e realidade atual,
inclusive a que o País vive no momento. É a mentira reinando soberana em todas
as camadas das sociedade. Inclusive no âmbito do judiciário ou da constituição
e dação da justiça. Haja vista que, no final, desvenda-se que o grande
comprador de mentiras é o próprio juiz da cidade, Dr. Rivail. Desse modo, a figura da alegoria contida no romance/novela do autor pode significar uma
grande metáfora “in extensis”, isto
é, que uma situação fictícia, de caráter enganoso, toma lugar à verdadeira
realidade, talvez imitativa daquela simbologia já preconizada por Platão,
quatro século antes de Cristo, em sua célebre “Alegoria da Caverna”.
Quem
sabe nós, que nos arrogamos tanto de construtores da modernidade, não estamos
sendo conspicuamente enganados quando queremos distinguir, entre as sombras de
nossas indigência espiritual, os fatos que justificam a realidade meridiana do
sol?
Era
o que queríamos dizer sobre esse tratado simbólico de uma fantasia anunciada do
escritor e jurista Edvaldo Feitosa, que, de grado e em boa hora, nos dá a lume.
Bxb, 3.12.15
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